quinta-feira, 17 de abril de 2008

Dispersão (II)


Anda em mim um zum zum... assim no cantinho, sempre a fazer pst pst e a querer acordar. Entre cigarros e cafés lá o vou atrasando, adiando, evitando.
Barulhinho irritante, latente.

Chego a casa vou para o quarto, pouso a mala, desligo o mp3, dispo o casaco, sento-me à secretária, ligo o computador, e-mails, música de fundo (sempre), cama.

Está a chover lá fora. Deito-me na cama, sempre ao contrário, gosto de pousar os pés nas almofadas (são quatro) e estar com a cabeça aos "pés da cama". Olho para a janela, este quadro que espreita para o que tantos chamam de "realidade". Engraçado... o meu quarto é o mundo de ilusão e numa das paredes está um quadro onde está pintada a realidade. Gosto de pintar a realidade. Gosto especialmente quando o quadro me mostra algo tão especial quanto a chuva, um pôr-de-sol que desce até às árvores, uns pássaros que pousam nelas de vez em quando, os carros que passam na estrada...

Lembro-me de ser miúda e imaginar (isto depois de longas conversas com a minha avó em que ela me tentava explicar quem era Deus) que havia um homem a quem chamavam deus que brincava connosco, da mesma maneira que eu brincava com os pinipons. Eu era deus dos pinipons, punha-os no ring de patinagem (era verde e cor-de-rosa) e rodava-os como bem me apetecia. Imaginava que esse tal deus, à semelhança dos meninos, desenhava as estradas e com os dedos empurrava os carros em direcção a um qualquer destino. Lembro-me também de pensar que ele era surdo, isto porque sempre que eu me aproximava dos pinipons não ouvia o que eles diziam e se eu não conseguia ouvir nada do que os meus bonequinhos diziam então deus também não conseguia ouvir aquilo que os bonequinhos dele diziam. A minha avó nunca entendeu o porquê de eu dizer que deus era surdo.

Lembro-me de passar horas a olhar para a televisão na esperança de entender como é que as pessoas entravam lá dentro. Lembro-me que durante anos mantive para mim mesma a teoria de que quem aparecia na televisão não era muito maior que uma formiga e que era a lente que as aumentava. Lembro-me de achar que quando desligava a televisão eles faziam festas e às vezes aproximava-me quando a televisão estava desligada na esperança de ouvir qualquer coisa do que lá dentro se passava.

Lembro-me de achar estranho que uma mesma pessoa pudesse ser outras de filme para filme e perguntar à minha mãe como é que tal era possível, se bem me recordo a explicação envolveu qualquer coisa do género "na vida real ela é X e isso nunca muda, depois de vez em quando pode fingir que é Y, W ou K". Lembro-me de pensar nisso e chegar à conclusão de que a minha mãe não percebia nada daquilo.

Lembro-me de olhar para o céu e pensar em como teríamos nós chegado aqui, em como conseguiam o sol e a lua estar lá em cima se não tinham asas. A explicação de que tinha sido deus nunca me satisfez, se eu não conseguia fazer isso então ele também não.

Lembro-me de preferir ir para casa da minha avó depois da escola por quatro razões, cozinhava sempre o que eu lhe pedia para o almoço, contava-me histórias de outros tempos, partilhava silêncios comigo e deixava-me sempre brincar à chuva, mesmo a saber que a minha mãe ia ficar chateada com ela.


Às vezes fico espantada com as coisas que lembro. Continuo a não acreditar em deus (embora a minha avó não goste), já sei como funcionam as coisas na televisão e sim continuo a maravilhar-me com o céu e o que está para além dele e aí sim eu sei que existem muitas forças, capazes de arrastar consigo corpos e vontades... corpos e vontades...

E pronto... chegou o zum zum outra vez... Talvez seja melhor ir fazer um cappuccino, não vá eu chegar a alguma conclusão sobre coisas que é melhor (por enquanto) não saber.

4 comentários:

Adore disse...

Ao ler-te recordei coisas, que me fazem sentir saudade...

beijinho

Ai e Tal... disse...

Lembro-me de pensar nisso e chegar à conclusão de que a minha mãe não percebia nada daquilo.

AHAHAHA Não acham sempre as crianças que os adultos não as entendem??? E será que entendem?? Acho que não...

***MUAH***

Que texto lindo :)

farfalla disse...

muitos adultos não entendem as crianças porque esqueceram aquele mundo tão particular que cada uma tem... é pena :)

_baci_!

Ai e Tal... disse...

É pena... Mas eventualmente vai acontecer a todos...

***MUAH***