quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

O Saco de Morangos

Ela passou com um saco cheio de morangos.

Da cadeira que escolhi vi a porta de madeira com grades vermelhas… vermelho que contrasta com o amarelo das paredes. Eram duas as janelas abertas. De uma espreitei os cotovelos de um personagem que existe apenas no fumo que expele dos lábios gastos, de outra vejo uma senhora, já de uma certa idade (não que a expressão queira dizer algo, ou seja apropriada, dizer que alguém é de uma certa idade não lhe dá um carimbo etário preciso, uma certa idade poderiam ser 15 anos, embora aí não lhe chamasse senhora, poderia ter 30, ou 40 mas a verdade é que quando atribuímos a alguém o carimbo de “uma certa idade” as quantidades são sempre elevadas, digamos que nunca abaixo dos 70), põe no seu cabelo branco uma flor verde. A sua imagem remete-me para uma outra senhora que vi uma tarde em que caminhei pelo parque Eduardo VII. Lembro-me que estávamos no fim do Inverno, num daqueles dias que antecedem a chegada da Primavera mas que têm já sabor a Primavera. Caminhei, com ela, ela que é a amiga de sempre, a que vê quando ninguém sequer suspeita, a que ouve quando eu não digo, as árvores deixavam passar os raios de sol por entre os ramos e entre silêncios, monólogos, passadas lentas. Caminhámos lado a lado, ou uma um pouco mais à frente que a outra, quando demos por nós estávamos perto daquele parque a que chamam Amália. Sentámo-nos, pedimos algo que não me lembro o que foi, e observámos algumas pessoas, como sempre. Acto involuntário. Foi aí que a vi. Sei porque o escrevi.

Ela tinha um casaco vermelho.

Ela tinha um casaco vermelho velho mas que não é velho, é vintage. Acompanhou-o do seu cabelo, meio ruivo meio amarelo, atabalhoadamente apanhado numa banana presa por um gancho amarelo e vermelho, como o cabelo. Escolheu uns brincos pérola e redesenhou sobre as rugas um risco preto que realça os seus olhos azuis que parecem verdes, vivos ainda. Dou-lhe setenta anos, não deve estar muito longe disso, o seu rosto não mentirá muito sobre a sua idade, mas os seus olhos, o seu olhar é o de alguém que tem dentro de si o fervor de uma vida ainda, uma vida que ainda arde em tons de azul e verde. Da bolsa cor de caramelo puxa um pacote de cigarros, tira um e coloca-lhe na ponta do filtro algo que sei o que é mas que não sei o nome correcto, como as mulheres usavam nos anos 20. Não sei o seu nome mas qualquer nome que não seja místico não será o seu com toda a certeza.

Foi assim que terminou o texto. Esqueci-o por entre as pequenas folhas de um pequeno caderno que naquele tempo sempre apanhava boleia na minha mala. Mas lembro-me da imagem dela, muitas vezes. Pela força, pelo mistério, pelo carimbo que me deixou naquele dia. Não a imagino avó de alguém, para mim uma avó veste aventais ou batas de padrões floridos e demasiado garridos, usa botas de borracha ou umas pantufas de rede, tem os cabelos curtos porque assim dá menos trabalho e todo ele é cinzento. Essas são as minhas avós, as avós que o meu imaginário reproduz quando busco a imagem que associo a essa palavra. Ela não era assim. Ela parece a minha tia-avó, irmã da minha avó paterna, aquela que usava saltos altos e unhas vermelhas, se maquiava, e tinha todos aqueles vestidos e sapatos fantásticos dos anos setenta. Essa minha tia não tinha netos, era tia e não avó e não a consigo imaginar como avó. Mas o carimbo que ela, com o casaco vermelho, me deixou foi diferente, quis ser como ela e ser avó, deslumbrar os meus netos e deixá-los vir ter comigo pedindo histórias, hei-de gastá-las todas e eles hão-de pedi-las de novo, apenas porque gostam de mim.

Ela passou pela rua com um saco cheio de morangos vermelhos.

Pergunto-me se se conhecem… as duas janelas, aquelas em que pousavam o senhor do fumo e a senhora da flor verde, talvez não se conheçam já que que sobrepostas nunca se encontram. Na praça passam personagens que me despertam por entre tantos outros que se misturam sem sobressair. Nem sempre o que sobressai é positivo, mas a verdade é que, cada um pela sua razão, não são iguais. Guardo-os um pouco enquanto percebo que a Primavera, este ano, não trouxe andorinhas. Não vejo os ninhos, não as vejo nem ouço. Talvez tenham migrado para o Verão.

E tinha um saco cheio de morangos.

Irritam-me os putos e os skates, não por serem putos ou por terem skates mas por conjugarem ambos com a triste atitude de que tudo é deles. Hoje não me apetece ouvir o baque da madeira contra o chão. Também me irritam os pombos que correm pelas migalhas que se espalham com o vento pela calçada. Há passos, caminhos, ritmos. Sobem escadas, descem escadas, riem, correm, mais coradas, mais pálidas, mais calmas, mais agitadas, mais atentas, mais alheias. Pessoas que passam aqui. Será que alguma me viu? Algumas pessoas sentam-se e pedem copos, ele sentou-se e pediu uma garrafa, vinho branco. Durante algum tempo pensei que esperasse alguém mas a garrafa ficou vazia e as cadeiras que estavam ao seu lado também. Perguntei-me durante algum tempo se a pequena tristeza na sua íris seria por alguém não ter chegado ou porque simplesmente ninguém se sentou.

Sentei-me sozinha na esplanada porque decidi ir a pé para casa. Desci a avenida e apeteceu-me parar na praça e pedir uma cerveja, que nem sou grande apreciadora, mas apeteceu-me e por vezes há que dar ouvido às vontades. Sentei-me sozinha no meio da praça, com o sol a queimar-me os ombros e um sorriso a rasgar-me os lábios e foi aí que ela passou pela rua. O vestido era preto, o cabelo era preto, os olhos estavam pintados de preto, as botas eram pretas, as pulseiras e os fios eram aparentemente pesados e pretos, apenas os lábios eram vermelhos e esse vermelho brincava com o saco, cheio de morangos vermelhos, que ela trazia preso na palma da mão esquerda.