terça-feira, 25 de março de 2008

Pestanejar


Escorreste-me entre dedos, durante a chuva, em dó menor, num dia ímpar.

Eras subtil na barulheira que causavas. Eras negro entre luz e luz na eventual escuridão. Circunstancial em todo o caso, maioritário em caso algum.

Sorvi-te a conta gotas para que te esgotasses mais lentamente. Mas mesmo assim não te poupei o fim. Fui vampira em segredos de arrastão. E então? Não tiveste segredos tu também??

Para quê mentirmos em algo que grita por simplicidade. Ser simples é ser honesto. Apenas.

Rasgo-te em fechares de olhos. Apago-te. Sem escapatória possível. Não podes controlar a minha memória. O meu cérebro. O meu querer. Sim quero que te apagues. Não te apago eu, desapareces tu e as minhas memórias vão contigo ao sabor do pestanejar. Não pode ser diferente e indiferente simplesmente não foste.

Lembro-me da doçura do toque. Antes bem antes. Quando mal me olhavas nos olhos... falta de coragem, lembras? (Pestanejar) Lembro-me do cheiro da pele... impossível de reproduzir, não sei que cheiro é esse mas não há perfume que o camufle nem pestanejar que o apague. (suspiro) Lembro-me do gosto a amora silvestre... tinhas um gosto delicioso povoavas a minha boca e a minha língua como nunca ninguém o fizera antes. (sorriso/pestanejar) Lembro-me dos abraços aveludados, veludo vermelho, sempre quentes, recheados de sentimentos e chocolate. Como esquecer? (cruzar de braços)

Lembro-me de como me esperavas à porta, sempre a ocupar um degrau, pé irrequieto, dedos a balançar no cotovelo. Tenho saudades de quando esperavas por mim. Quando eu era a razão que te fazia esperar... sim tenho saudades mas essa é uma palavra que jamais se mata. (Pestanejo)

Daqui a um tempo finito mas indefinido o sol virá, em dia par. Com ele o pestanejar acabará. Terei que te fechar os olhos e ter-me-ás já escorrido entre os dedos, já sem chuva e possivelmente já em mi mas sem mim. Porquê? ...a isso sorrio apenas...



)pestanejar(

terça-feira, 18 de março de 2008

Confissão


Confessa. Pede.
Munido de tambor gritas,
o que queres que ouçam,
por entre os acordes ensurdecedores do tambor.
Shiuuuuu...
Se queres que te ouçam arruma o tambor.
Assusta-te o chão e o céu. Ambos negros.
Terrivelmente próximo e
inevitavelmente longínquo.
Não te é permitido entender
o branco horizonte entre ambos.
Nua carrego as máscaras que camuflam, filtram, disfarçam o meu saber.
E eu sei, embora não te o queira dizer.
Caminhas na minha direcção
com tal desejo de superioridade
que o teu peso te crava os pés bem no chão.
Gostas de saber
mas não te é permitido o essencial.
Podes tocar o tambor quão alto
e ensurdecedor quiseres.
O sussurro será sempre meu.

sexta-feira, 14 de março de 2008

Esplanada


Numa esplanada onde nada acontece acontecem, por vezes, coisas interessantes.
Uma mesa que reflecte o sol de Março (em detrimento das chuvadas), uma sombrinha sem sombra, um cigarro que queima, uma parede branca rabiscada por alguém que acha que faz arte, não contesto nem protesto passa-me ao lado, embora esteja de frente. Conversas abafadas pela música que me vai nos ouvidos. Os cães que me olham, a crítica por beber um galão em hora de almoço, por estar só com um jornal e um caderno, ah não esquecendo o cigarro claro (companhia de esplanadas em dias que correm), o empregado semi engatatão que manda as suas piadas na tentativa de sacar um número de telefone, ou algo mais... O filho que vem beber café com a mãe...ou será uma amante?...hum...abstenho-me desta observação. As bengalas que ajudam a segurar o peso do que outrora foi vida galopante... Os táxis que ajudam a chegar mais rápido a sítio nenhum... As vozes. Sempre as vozes. Os pés que batem na espera de um autocarro que vem sempre fora de horas. Os barulhos, os cheiros confusos. De novo o empregado... tem medo que o sol "me seque". Quero la saber do sol seu tolo. (risos prolongados)
Mimam-me as pessoas. Acordam-me os cheiros.
E tu? Que estás aí a fazer?
Ops... interrompida por um som interessante, voz rouca... "Desculpa interromper. Tens lume?" Respondo: Claro.
(Riso) Quando nada acontece acontecem coisas giras... ah! Afinal não era amante... era mesmo mãe. Abstenho-me do restante.

[Nota de Rodapé: Obrigado a ti que me deste a conhecer esta maravilha de música, Uncertain Smile dos The The]

segunda-feira, 10 de março de 2008

Abraços


Tinhas perfume a jasmim quando te encontrei pela primeira vez. Queimavas e emanavas o teu odor como se fosses incenso... Quis-te. Despertas-te em mim a vontade de te incendiar e invadir o meu quarto com o odor a ti. Se te disser que te quero acima de tudo minto, claro. Mas não se disser que te quero ter. Apetece-me queimar-te as minhas iniciais no peito, marcar-te a ferros.
ABRAÇAS-ME.
Diz que o amanhã não me vai fugir. Preciso ouvi-lo de ti. Acredito na mentira se sentir nela a tua voz, o teu cheiro. Adoro que me mintas. Fico feliz quando pensas que acredito. Quando me crias frágil e incapaz de discernir.
ABRAÇO-TE.
Odeio que não me vejas, que não me entendas. Não minto mas as perguntas que colocas despoletam sempre respostas inconclusivas que mesmo assim queres, nas quais não vês as reticências que ficam no rasto.
ABRAÇAMO-NOS.
Chamas-me miúda. É sempre mais fácil quando me reduzes a uma miúda. Justificas assim aquilo que não consegues argumentar. Fazes-me rir, é por isso que te abraço, porque não consegues sentir que já te estou a fugir.
Não nos prendemos. Compreendemo-nos nesta discrepância de entendimentos.

quarta-feira, 5 de março de 2008

Interlúdio


Sentada no banco o sentimento era primaveril.

O tempo passava. Quieto. Silencioso. Delicioso.

Era tempo de pensamento vago. Sossegado. Sussurrante.

Desculpa se não te vi passar por mim mas vi tantas outras coisas entretanto.

No pó do vento certezas vieram embaladas pelo cheiro da estação, dançando em bicos de pés.

Desculpa se não te ouvi mas ouvi tantas outras coisas entretanto.

Minuciosamente contei quantas contas aquele fio tinha. Depois quantas tinha de cada cor. Naquele momento importaram-me as contas e não o significado do fio.

Desculpa se não te entendi mas entendi tantas outras coisas entretanto.

Sinto agora aquilo que não digo por não o saber fazer. No pó do tempo se arrastam as palavras.

Desculpa se te senti mas é do entretanto dos sentidos que vivo.

terça-feira, 4 de março de 2008

Inspiração


Vem assim
do som da harpa.
Frágil.
Negra disfarçada por branco.
Pureza.
Acordes ditados pela escura condição humana.
Harmonia da descoberta.
Ambas, obra e orquestrador
em perfeita sintonia do saber
sem razão, sem explicação.
Inspiração apenas.

sábado, 1 de março de 2008

Montale



Contrariamente ao que vem sendo regra hoje vou postar um poema alheio, de Eugénio Montale, poeta Italiano. Para mim é o poema que melhor define o que é a poesia, seria um pecado não partilhar :)



A POESIA

I

A angustiante questão
se é a frio ou a quente a inspiração
não pertence à ciência térmica.
O raptus não produz, o vazio não conduz.
não há poesia no sorvete ou no espeto.
Tratar-se-á antes de palavras
muito importunas
que têm pressa de sair
do forno ou do congelador.
O facto não tem valor. Mal estejam fora
olham em volta e têm ar de dizer:
que estou aqui a fazer?

II

Com horror
a poesia recusa
as glosas dos escoliastas.
Mas não é certo que demasiado muda
se baste a si mesma
ou ao aderecista que tropeça nela
sem saber que é
o seu autor.

[tradução de João Manuel de Vasconcelos]