segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Agro Dolce





Ela dançou, na ponta dos pés, no meio do campo de milho. Não havia o medo, não havia  a tristeza a dúvida. Só ela, e os pés que se esgueiravam pelo meio das folhas.

O amor agri-doce.
A doçura de acordar de manhã, e olhar quem se ama dormir. Sem voz, sem gesto, apenas a doçura do sentimento espalhada em nós, por nós. Atada àquele que baptizaram de coração. Aquele que impõe e nos faz sorrir em delícia sincera.
O agri dos momentos azedos, das eventuais lágrimas salgadas que se passeiam pelo rosto e se espalham como chuva que cai no chão.

Amor doce não existe por si só. Inexequível. Quem ama discute para crescer, porque ama, porque sente. Não há amor de mel, apenas mel com limão. E quando o limão se espalha com o seu travo azedo pela nossa boca, quando o sentimos na nossa pele e inundar os nossos olhos de tudo o que há de menos bom… o mel abraça-nos em espessura e doçura.
Foi assim que cresci. Agri doce. Capa azeda, recheio doce. Com tudo o de mau que me deram e que me deu um recheio mais quente, mais encorpado. Real.
Chocolate com pimenta. O açúcar que se derrete na boca e a pimenta que estala na língua.
Quando era pequena ela dançava, sozinha, escondida. Não pensava, apenas dançava. Ouvia e sugava sem partilhar o que dela brotava, tudo o que dela emanava. Com uma capa recheada de sorrisos, aninhada em normalidades banais ela sabia que a verdade estava naqueles momentos em que fugia de tudo, todos, e se escondia no campo de milho e se deitava emoldurada por todo aquele verde. Contava pássaros, borboletas, animais em nuvens. Cantava sem que ninguém ouvisse. Era feliz e inteira no espaço destes nadas que a faziam feliz. E dançava, quando ninguém a via, quando ela era o seu único centro e nada estava dependente do que ela fazia.
Hoje sei que tenho mais de doce, embora o azedo exista. Ainda danço descalça pelo chão quando estou sozinha em casa. Mas hoje sei que partilho o que sou, quem sou, em agri doce. E não há nada melhor que um abraço que seca lágrimas e um peito que apaga mágoas.

Não é tudo, mas é amor.

Sugestão Musical: http://www.youtube.com/watch?v=ssdgFoHLwnk

Imagem retirada do Google

quarta-feira, 18 de julho de 2012

Inverno



O frio embrulha-se na pele. Como se esta não fosse suficiente. Como se não fosse uma proteção. Como se esta não existisse. Infiltra-se como se chegasse aos ossos. Eriça. Excita. Como o eterno lugar comum, o gelo que queima.
Escolho um casaco de lã, embrulho-me como se fosse para a rua. A rua que fica do lado de lá da janela.
Olho, o fim de tarde que se desenha no horizonte. O mar. O vento.
Inverno
Estação.
Passado.
Músicas antigas, bandas sonoras de filmes que são também o passar de histórias minhas, comuns.
Os sorrisos serenos de quem vê de longe. Quem recua no tempo. Sente o que já passou, como se estivesse ao meu lado. Vivo. Do lado de dentro do vidro.
A cada letra uma imagem que se desenha do lado de dentro do peito, por baixo da pele, no negro da íris. Abraça-me em forma de gelo, gelo que aquece no peito. Abraço-a de volta. Dançamos lentamente ao compasso da letra…
I’m fine baby, how are you? Lugares comuns, banalidades…
Não são apenas dias, são anos presos nas pontas dos cabelos que ainda não foram cortados…
Lembro. Lembro a voz da minha avó misturada com o cheiro do pão no forno de lenha. A voz que dava resposta aos meus queixumes em idades de porquês. “As histórias têm o tempo de um fio de cabelo. A raiz vai crescendo, acompanhando, vivendo, vais cortando pequenas pontas. E com elas vão as memórias que ficam para trás. O cabelo demora a crescer, mas quando cortares essa última raiz que o tempo empurrou… a memória vai… e será quase como se não tivesse acontecido”
Sempre tive aversão a cortes de cabelo. Sempre achei que me cortam demais. Sempre fiquei presa no passado. Nas memórias. Nas raízes que demoram a cair, talvez tenha que cortar o cabelo mais vezes.
Suspiros silenciosos que se prendem num pequeno pestanejar.
A música pára, a dança também. Abraço o frio que me gelou os dedos e a ponta do nariz.
Serenidade. Aquece os lábios, desenha sorrisos.
Não preciso cortar a raiz… há sempre um cabelo que cai, todos os dias.

Imagem de Klimt

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Memória



Ás vezes o papel só serve para fazer desenhos. Desenhos e não palavras, palavras em desenhos. Um blah blah blah de imagens soltas, dispersas e (aparentemente) sem sentido.

Ainda dou pestanejares ao esquecimento. Ainda tenho slides de fotografias nos meus olhos. Ainda me lembro de frases soltas, gestos sem sentido, cheiros que me realçam a memória.


A manhã que se desprende em abraços de preguiça ou aqueles dias que acabam sem querermos que outros comecem.


Ainda lembro o vestido das borboletas que sujei dançando na lama, ainda me lembro quando dançámos sobre a relva ensopada, sem que as cronologias sejam respeitadas. Ainda me lembro dos rodopios, dos sorrisos, lembras?


Ainda me lembro do que escrevi a primeira vez que te vi, a primeira vez que te toquei, a primeira vez que te beijei...


Ainda me lembro da janela do quarto, o meu quarto, das árvores do cinzento, ainda me lembro do cheiro pesado a cigarros nas paredes, nas folhas amarelas dos meus livros amontoados, os meus livros...


Ainda me lembro do quanto sorri e do quanto chorei naquele quarto, entre essas paredes, cheias de postais e borboletas, tudo emoldurado pela janela.


Lembro-me de quem fui, de quem me afastei, de quem me criei, de quem me esqueci, lembro todas, sou todas. Fui todas.


O horizonte acinzenta-se na sua infinitude. Uma criança brinca com o triciclo novo. Outra criança de roupas rasgadas brinca com o seu triciclo sem rodas. Outros jogam cartas, outros vendem cajú, outros olham e outros nada...


Outros fazem um ckeck-in, outros fazem um check-out. Outros nascem, outros morrem.


Tudo acontece e se sucede. Como eu. Como nós. Como todos.


Deixar-me ir na estranheza de lembrar. Lembrar e saber. Lembrar e duvidar. Lembrar e querer. Lembrar e melhorar. Lembrar e seguir. Lembrar e matar.


Como um caminho que se percorre de olhos vedados, a rendas.
A minha avó e as suas agulhas, a minha avó e o seu crochet, a minha avó e as suas histórias de terror, a minha avó e o seu forno de lenha, a minha avó e os seus gritos.


Memórias, desenhos, palavras, tinta dispersa em papel, como na memória.


Doença, alegria, carência.


Vozes que escolho como companhia. Sorrisos que escolho como companhia. Chás que escolho como companhia. Coisas, sempre coisas. As coisas que importam ou coisas sem importância.


O silêncio em todo o lado menos dentro de mim. A saudade dobrada nas pestanas que se tocam. Eu e tu. Eu tu e a caneta. Eu, tu, a caneta e a tinta. Juntos em vazios que se desprendem como fogo de artifício nos olhos, nos lábios, nos dedos.


quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

O Saco de Morangos

Ela passou com um saco cheio de morangos.

Da cadeira que escolhi vi a porta de madeira com grades vermelhas… vermelho que contrasta com o amarelo das paredes. Eram duas as janelas abertas. De uma espreitei os cotovelos de um personagem que existe apenas no fumo que expele dos lábios gastos, de outra vejo uma senhora, já de uma certa idade (não que a expressão queira dizer algo, ou seja apropriada, dizer que alguém é de uma certa idade não lhe dá um carimbo etário preciso, uma certa idade poderiam ser 15 anos, embora aí não lhe chamasse senhora, poderia ter 30, ou 40 mas a verdade é que quando atribuímos a alguém o carimbo de “uma certa idade” as quantidades são sempre elevadas, digamos que nunca abaixo dos 70), põe no seu cabelo branco uma flor verde. A sua imagem remete-me para uma outra senhora que vi uma tarde em que caminhei pelo parque Eduardo VII. Lembro-me que estávamos no fim do Inverno, num daqueles dias que antecedem a chegada da Primavera mas que têm já sabor a Primavera. Caminhei, com ela, ela que é a amiga de sempre, a que vê quando ninguém sequer suspeita, a que ouve quando eu não digo, as árvores deixavam passar os raios de sol por entre os ramos e entre silêncios, monólogos, passadas lentas. Caminhámos lado a lado, ou uma um pouco mais à frente que a outra, quando demos por nós estávamos perto daquele parque a que chamam Amália. Sentámo-nos, pedimos algo que não me lembro o que foi, e observámos algumas pessoas, como sempre. Acto involuntário. Foi aí que a vi. Sei porque o escrevi.

Ela tinha um casaco vermelho.

Ela tinha um casaco vermelho velho mas que não é velho, é vintage. Acompanhou-o do seu cabelo, meio ruivo meio amarelo, atabalhoadamente apanhado numa banana presa por um gancho amarelo e vermelho, como o cabelo. Escolheu uns brincos pérola e redesenhou sobre as rugas um risco preto que realça os seus olhos azuis que parecem verdes, vivos ainda. Dou-lhe setenta anos, não deve estar muito longe disso, o seu rosto não mentirá muito sobre a sua idade, mas os seus olhos, o seu olhar é o de alguém que tem dentro de si o fervor de uma vida ainda, uma vida que ainda arde em tons de azul e verde. Da bolsa cor de caramelo puxa um pacote de cigarros, tira um e coloca-lhe na ponta do filtro algo que sei o que é mas que não sei o nome correcto, como as mulheres usavam nos anos 20. Não sei o seu nome mas qualquer nome que não seja místico não será o seu com toda a certeza.

Foi assim que terminou o texto. Esqueci-o por entre as pequenas folhas de um pequeno caderno que naquele tempo sempre apanhava boleia na minha mala. Mas lembro-me da imagem dela, muitas vezes. Pela força, pelo mistério, pelo carimbo que me deixou naquele dia. Não a imagino avó de alguém, para mim uma avó veste aventais ou batas de padrões floridos e demasiado garridos, usa botas de borracha ou umas pantufas de rede, tem os cabelos curtos porque assim dá menos trabalho e todo ele é cinzento. Essas são as minhas avós, as avós que o meu imaginário reproduz quando busco a imagem que associo a essa palavra. Ela não era assim. Ela parece a minha tia-avó, irmã da minha avó paterna, aquela que usava saltos altos e unhas vermelhas, se maquiava, e tinha todos aqueles vestidos e sapatos fantásticos dos anos setenta. Essa minha tia não tinha netos, era tia e não avó e não a consigo imaginar como avó. Mas o carimbo que ela, com o casaco vermelho, me deixou foi diferente, quis ser como ela e ser avó, deslumbrar os meus netos e deixá-los vir ter comigo pedindo histórias, hei-de gastá-las todas e eles hão-de pedi-las de novo, apenas porque gostam de mim.

Ela passou pela rua com um saco cheio de morangos vermelhos.

Pergunto-me se se conhecem… as duas janelas, aquelas em que pousavam o senhor do fumo e a senhora da flor verde, talvez não se conheçam já que que sobrepostas nunca se encontram. Na praça passam personagens que me despertam por entre tantos outros que se misturam sem sobressair. Nem sempre o que sobressai é positivo, mas a verdade é que, cada um pela sua razão, não são iguais. Guardo-os um pouco enquanto percebo que a Primavera, este ano, não trouxe andorinhas. Não vejo os ninhos, não as vejo nem ouço. Talvez tenham migrado para o Verão.

E tinha um saco cheio de morangos.

Irritam-me os putos e os skates, não por serem putos ou por terem skates mas por conjugarem ambos com a triste atitude de que tudo é deles. Hoje não me apetece ouvir o baque da madeira contra o chão. Também me irritam os pombos que correm pelas migalhas que se espalham com o vento pela calçada. Há passos, caminhos, ritmos. Sobem escadas, descem escadas, riem, correm, mais coradas, mais pálidas, mais calmas, mais agitadas, mais atentas, mais alheias. Pessoas que passam aqui. Será que alguma me viu? Algumas pessoas sentam-se e pedem copos, ele sentou-se e pediu uma garrafa, vinho branco. Durante algum tempo pensei que esperasse alguém mas a garrafa ficou vazia e as cadeiras que estavam ao seu lado também. Perguntei-me durante algum tempo se a pequena tristeza na sua íris seria por alguém não ter chegado ou porque simplesmente ninguém se sentou.

Sentei-me sozinha na esplanada porque decidi ir a pé para casa. Desci a avenida e apeteceu-me parar na praça e pedir uma cerveja, que nem sou grande apreciadora, mas apeteceu-me e por vezes há que dar ouvido às vontades. Sentei-me sozinha no meio da praça, com o sol a queimar-me os ombros e um sorriso a rasgar-me os lábios e foi aí que ela passou pela rua. O vestido era preto, o cabelo era preto, os olhos estavam pintados de preto, as botas eram pretas, as pulseiras e os fios eram aparentemente pesados e pretos, apenas os lábios eram vermelhos e esse vermelho brincava com o saco, cheio de morangos vermelhos, que ela trazia preso na palma da mão esquerda.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

sonsondergang


"...matar saudades de ti. Ou matar-te, como fazem as crianças, para recomeçar uma outra história, no balouço quotidiano do teu sorriso."

Conhecem o sentimento?

Uma ideia aninhada em forma de embrião no cérebro? Como uma música que ouvimos algures, não sabemos de quem é, não sabemos a letra mas que insiste em martelar na nossa cabeça em forma de pequenos acordes isolados que se repetem? As palavras são iguais. Surgem, encontram amigas pelo caminho, unem-se e quando crescem para pequenas frases/ideias dispersam-se pelo cérebro em pequenos martelos... deliciosos, irritantes, tristes, vivos ou qualquer outro adjectivo que acrescentem a si mesmas.

Estou em casa. Da cadeira que se arruma atrás da secretária vejo a janela da sala... e ela veio enquanto olhava o sol, tão simples quanto isto;

"Entre pestanejares o sol morria de raios presos nas folhas que dançavam ao sabor do vento."

Apenas uma frase que martelou e martelou até se aninhar atrás da orelha e eu já não conseguir olhar para o computador, para a televisão ou mesmo para a janela. Uma inquietude que se instala na alma, ou na nuca... nunca sei muito bem.

Pego no caderno de sempre e é isto que tenho que escrever: "Entre pestanejares o sol morria de raios presos nas folhas que dançavam ao sabor do vento."

Entendem o sentimento?
Embrulha-me o estômago, não é enjoo, não é fome, é esta ideia, maior que o resto no momento, esta ideia que nasce e não espera por nada nem ninguém... como um pequeno animal que nasce e começa logo a andar, não precisa mais que nascer para andar. As ideias andam dentro de nós e explodem de várias formas, num olhar doce que damos a alguém, numa frase que dizemos a alguém, no simples tocar alguém... ou então... Ou então morrem no papel, no papel por onde rolamos a tinta que os nossos dedos comandam. E aí... já não são minhas, já não são apenas minhas, são um novo universo que assim que nasceu começou a andar sozinho...

Conseguem entender?

"Entre pestanejares o sol morria de raios presos nas folhas que dançavam ao sabor do vento."

E depois disto já não tem lógica, são sentimentos, memórias que se repetem porque se colam umas às outras, dão as mãos e dançam na minha mente. Eu, de costas para a sala, olhos fechados, saboreio o por do sol e o silêncio, o silêncio de onde se desembrulham passos, passos que ele percorre na minha direcção, as mãos que em silêncio se trancam em torno do meu ventre, o calor dos lábios na minha orelha e o coração que bate freneticamente nas minhas costas e me apaga todo e qualquer pensamento... paz. É a água que se espuma aos meus pés em sinfonia que apazigua, enquanto o sol desce beijando o mar e os miúdos correm pela areia desenhando pegadas alheias. É o quintal da minha casa, minha outra casa, onde em tardes de Verão o sol se espreguiça por entre as laranjeiras acompanhando o compasso preguiçoso de um cigarro. É a minha avó que me ensina a desenhar flores enquanto em troca pede que eu a ensine a escrever o seu nome. É o meu irmão, ainda bebé, a acordar da sesta com o sorriso mais doce e inocente, e o cheiro a bebé. São as suas mãos pequeninas e gordas que se abrem para mim e pedem colo enquanto o sol desce pela janela... Sou eu, com elas, a saltar à corda em lengalengas que tentavam acompanhar o compasso dos saltos, antes que o sol se fosse, antes que tivéssemos que voltar a casa. Sou eu, agora, deste quarto andar vendo tudo isso em flash solarengo.

Entendem?

"Entre pestanejares o sol morria de raios presos nas folhas que dançavam ao sabor do vento."

É preciso matar para seguir. Matar em papel estas ideias, estas histórias, fazer estes exorcismos. Matar para seguir.

Diz alguém que a primeira parte para qualquer cura é aceitar-se que se está doente. Memórias, palavras, ideias, são uma espécie de doença... é que... entre pestanejares o sol morria de raios presos nas folhas que dançavam ao sabor do vento.

Citação retirada do livro Fazes-me Falta, Inês Pedrosa
Imagem retirada do Google

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Carpe Omnium



Nada está igual mas nem tudo mudou.

As ruas mantêm-se com a sua terra vermelha, barrenta. As
vozes que não entendo, ou entendo pouco, as cores nas roupas, nas pessoas…

Nada está igual mas nem tudo mudou.

Para cada acção há uma reacção.

Eu mudei nas roupas que escolho, quase todas, nos sapatos
que uso, alguns, nos adereços que escolho, quase nada, na maneira como olho as
coisas, tudo!

Há uma certa beleza idiossincrática que me escapou antes,
uma beleza simplista que se resume em pequenas coisas, tão pequenas quanto o
facto de caminhar (quase) no centro da cidade e ouvir pássaros como se
estivesse no campo. Não no campo, como se estivesse na minha aldeia, a minha pequena
aldeia atrás do sol, com tantos que amo. A verdadeira beleza é simplista, tão
simples quanto o acto de escrever estas palavras num caderno de folhas já
amarelas forradas a capa de capulana, numa esplanada (quase) no centro da
cidade, onde consigo ver os pássaros cantar alegremente e avistar o mar escuro
emoldurado pela terra castanha acompanhado por uma fatia de tarte de maracujá…

Doce e azedo. O excesso de doce azeda-me a boca, há uma
linha ténue entre o doce em falta e o doce em excesso que leva o melhor a ficar
mau. Na arte da doçaria como na vida doce em excesso azeda, como ilusões que se
nos apresentam salpicadas a açúcar e pepitas de chocolate… ilusão de muita
doçura. Mas passíveis de azedume. Na arte da doçaria como na vida… doce q.b. por
favor.

São cinco da tarde e atrevo-me a afirmar que metade das
pessoas que estão comigo nesta esplanada já terminaram o seu dia de trabalho e
aqui vieram matar um espaço de tempo que habita na sua existência. Como eu. É
uma boa forma de o fazer, não?

Nada está igual mas nem tudo mudou.

Quase todas as ruas têm o mesmo nome, a mesma direcção mas
aparentemente mais semáforos. Precisaremos de mais “luzes” que nos digam para
parar, seguir, ou avançar com cuidado? Quase todas as ruas têm o mesmo nome mas
o simples acto de encontrar chás que me agradem mantém-se difícil. Há um amor
pelo Rooibos que me parece um tanto ou quanto exacerbado… mas quem sou eu…
Suponho que faça também parte da beleza.

O caminho é o mesmo, a árvore é a mesma, a mesa que escolho
é a mesma. A casa é a mesma e praticamente tudo está como deixei, as mesmas
fotos, nas mesmas molduras, nos mesmos locais que escolhi, estampas que me
recordam pessoas especiais. Os seguranças do prédio, os mesmos, iguais nas
pequenas diferenças que se lhes
acrescentaram no espaço de um ano, mais ou menos uns gramas, mais umas rugas e
num caso muito particular uns óculos de massa pretos, vintage, Ray Ban, quando
o vi depois deste ano disse-lhe “Parece o Ray Charles”, sorriu com o mesmo
sorriso e gratidão de sempre. E contínuo sem saber o seu nome… a Júlia que
sorriu como nunca a tinha visto sorrir e que se mantém igual, este ano não
passou por ela. A mercearia da esquina, com os mesmos empregados, os mesmos
patrões mas com mais estantes. Os pavões que se passeiam pela rua continuam sem
o leque de penas mas mantêm o passo galante rua acima, como se fossem suas…
talvez sejam. O Vila Itália na
esquina, que agora se chama Ciao! Mas
que se mantêm italiano. A pequena banca da rua, com a menina que vendia a
papaia que eu gostava, fechou, ficou sem dinheiro. Agora tem outra menina mas
já não tem papaia.

Nada está igual mas nem tudo mudou.

Nesta esplanada que tantas vezes visitei e que hoje, depois
de um ano, visito de novo continuam a olhar curiosamente para esta pessoa que
escreve nas folhas amarelas de capa forrada a capulana. Alguns olhares parecem
falar, “será um diário?”, “será maluquinha?”, “será uma carta?”, “serão notas?”,
talvez não pensem nada, muitos nem me notam e essa é sempre a melhor parte.

As crianças ainda brincam com as empregadas enquanto as mães
bebem os seus chás com as suas amigas, o sol ainda me queima na pele e ainda
fico vermelho camarão antes de bronzear.

Nem tudo mudou e isso é bom.

Mas nada está igual no lado de dentro dos olhos que me acompanham.