terça-feira, 27 de setembro de 2011

Repetição




A noite fria distendeu-se juntamente com os lençóis até ao fundo da cama, com o sol o calor disse bom dia.
Sinto o meu suor húmido na almofada e o teu espaço frio na cama.
Sozinha. Acordei com o meu sorriso abandonado.

Não tenho voz. Embrulhou-se algures nos vincos dos lençóis...

Tenho fome de carinho. Como uma sandes de camadas. Uma de abraços, outra de beijos, outra de vozes, outra de palavras, outra de nadas. Os nadas vão sendo nas entrelinhas os que mais sabor têm.

Levanto-me, embrulho-me em qualquer coisa que encontro pelo caminho... Há quem acorde de olhos adormecidos, eu acordo com os pés adormecidos. Arrasto-os comigo pelo corredor.
Casa vazia.

Estendo o meu tronco sobre o tampo semi espelhado da mesa. Vejo a minha respiração bater na superfície e evaporar.

Vazio.

Os vazios passeiam por entre espaços preenchidos em nós.
Como?
É como ter um frasco com pedras até ao topo, olhamos e dizemos que está cheio, mas se lhe deitarmos areia ainda há espaços por onde deslizar e se olharmos diremos que está cheio, mas podemos sempre verter água.... e ela irá deslizar por entre as pedras e ensopar a areia. Há sempre um espaço vazio, mesmo quando tudo nos parece cheio...

Não sei onde começo e acabo, sou quase como o lençol que se embrulha durante a noite. Embrulho-me pelo caminho, nos meus pensamentos, no que vejo, no que sinto... e no todo que se preenche permanece este vazio, miúdo dia sim agudo dia não.

Vou até à casa de banho, molho o rosto, como que na esperança de que o toque da água fresca e pura na pele me limpe o que suja por dentro. Os medos, as dúvidas, as desilusões, as reticências que vão ficando no longo livro que escrevemos. Não rasgaria, ou tão pouco omitiria folhas escritas até agora, mas algumas delas foram escritas a sangue... e mesmo quando já muitas páginas se lhes sobrepuseram, por vezes, esse sangue pinga ou borra, não desaparece, e nem mesmo essas apagaria.

Não esqueço o bom ou mau, mas confesso que lembro sempre o mau com mais força, o vermelho é mais vivo, salta das gavetas.

esqueço tudo o que não estimulam em mim. Seja em dor ou amor.
A falta de estímulo esvazia em mim a água que no frasco ensopa a areia.

Sou demasiado poética nas histórias que desenho sobre a minha cabeça, demasiado vaga nos saberes que escorregam dos meus lábios, demasiado severa no julgamento que lanço com o meu olhar, demasiado viva no corpo que entrego entre os lençóis.
Caberia num átomo, mas não me chega o mar.

Mas nada é repetido... ou igual... há sempre uma pequena diferença no acto de repetição. Ninguém percorre o mesmo caminho, ainda que o faça lado a lado.

"O tempo humano não anda em círculos, mas avança em linha recta. Por isso o homem não pode ser feliz: a felicidade é desejo de repetição."


Tenho saudades de acordar e ter já os teus olhos pousados em mim, dos corpos colados, dos lábios mordidos, das mãos entrelaçadas. Mas mais que saudades tenho sempre saudades de saber que ela existe do lado de lá do espelho. Uso-a como uma flor viva em cor e cheiro que se colhe para enfeitar o cabelo.

Acendo um cigarro. Mais um.
Companhia de tantas horas em vazio. Vazio em repleto. Esvai-se. Fumar é quase como escrever, uma onda de fumo que engolimos e nos percorre o corpo saindo porque temos que respirar... Porque estamos vivos e para estar vivos precisamos respirar. É como o último travo que antecipa um fim insatisfatório. Apetece-me sempre outro cigarro imediatamente após o acto de raspar a cinza no fundo do cinzeiro, mas como em tudo na vida às vezes cansa a insatisfação e a repetição nem sempre traz consigo a perfeição. Nada se repete em igualdade, são apenas reticências de corpo diferente. desigual. vazio...


Imagem retirada do Google
Excerto do livro Insustentável Leveza do Ser, Milan Kundera