domingo, 15 de julho de 2007

Madalena e Carlos


Hoje vou falar deles.

Madalena, mulher feita com olhar de criança, cabelos negros e desajeitados, boca de ameixa, sorriso de maçã, pele de farinha, mãos de harpa, voz de mel.


Carlos, homem quase por construir, olhar perdido, cabelos castanhos e ordenados, boca de morango, sorriso inexistente, pele de avelã, mãos de terra, voz de cigarros engolidos.


Madalena estuda, quer ser professora para ensinar os meninos. Gosta de cantar ás escondidas do pai para que este não a chame de tola. Lê incessantemente como se as palavras fossem o único alimento que necessita. Todas as manhãs passeia á beira do lago e chora sem saber porquê.


Carlos trabalha, já desde os 12 anos, não tem sonhos, aspira apenas encontrar alguém que cozinhe para ele e seja um abrigo quando chega do trabalho. Não sabe ler mas gosta de ver as fotografias que acompanham as letras do jornal que todos os dias folheia no café do Senhor João. Todas as noites vai dar um passeio á beira lago olhando a lua, chora sem saber porquê.


Hoje a manhã estava agitada e Madalena não pôde ir dar o seu passeio ao lago. Optou por refugiar o seu olhar num livro, um qualquer romance que a faz ter um brilho especial nos olhos. Canta enquanto cozinha o almoço.


A agitação do dia não deixou que Carlos pudesse trabalhar, foi para o café do Senhor João e passou o dia inteiro a olhar as imagens dos jornais perdidos entre as mesas e acompanhados por cigarros. Pela primeira vez quis saber o que eram aquelas letras e os seus olhos brilharam. Assobiou uma música qualquer e foi para casa. Não conseguiu ir ao lago, a noite estava demasiado agitada.

Um qualquer feriado que o calendário marcou. Madalena adormeceu e não foi ao lago de manhã. Carlos dormiu até mais tarde e não foi ao café do Senhor João. Depois do almoço dirigiram-se os dois para o lago. Madalena a pé, Carlos de bicicleta a pedal.

O sol dourava o chão e a água estanca do lago. Apenas uma sombra ocupava aquele ouro. Carlos chegou primeiro, sentou-se ao lado dessa sombra sem deixar que ela o pisasse, olhou a água. Madalena chegou e viu que alguém ocupava o lugar onde todas as manhãs se sentava. Aproximou-se e disse Boa tarde, nervosamente Carlos respondeu da mesma forma. Madalena sentou-se ao seu lado. Abriu o livro que havia levado consigo e começou a ler em silêncio. Passado alguns minutos ouve-se a voz de Carlos que irrompe aquele silêncio de ouro Esse livro não tem imagens, ao que Madalena responde tem sim, mas são imagens desenhadas por palavras. Carlos olha o chão e Madalena fita-o, nunca leste um livro? Carlos diz que não e imediatamente ela começa a ler em voz alta a descrição de um pôr de sol num qualquer sítio, num qualquer tempo, quando parou de ler olhou para Carlos e sem precisar falar percebeu que ele tinha visto aquele pôr de sol. Olharam-se nos olhos e pela primeira vez sorriram naquele cenário embalado por luz e paz, acompanhados por imagens e palavras em conjunto.




2 comentários:

Henrique disse...

Muito boa (história) curta! :)

As palavras alimentam e descrevem aquilo que a nossa vista não consegue alcançar!

farfalla disse...

por vezes ajudam os olhos ligando-os ao cérebro :) e assim a todo o corpo. nunca substimar as palavras têm um dom poderosíssimo :)