segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Janela de Ninguém




Abro a janela.

[Frio]

Há o frio que me invade a pele, apetece-me senti-la viva.

Ele abre a janela. Sala, suponho. Estendem-se pela parede fileiras de livros. Não são livros quaisquer, são perfeitamente simétricos, capa vermelha em pele… Vejo-o puxar um e sentar-se numa poltrona, suponho, da qual apenas vislumbro uma esquina de pano em floreado gasto e foleiro.

Ele lê.

O vento sopra-me no peito, enrola-me o cabelo no rosto.

[Vazia]

Hoje acordei vazia, centrifugou o peito tudo o que nele se excedia… Há um peso exacerbado na leveza do saber, que me dói.

[Chuva]

Pousou o livro, afastou a cortina esburacada e acendeu um cachimbo.

Gosto de rituais. Submerso em si não me vê, apenas olha. Do lado de cá toca-me o cheiro a tabaco… cereja e mofo. Olho-o, vendo, sem que se aperceba de mim.

Dar-lhe-ei 70 anos, porque sim. Alto e barrigudo. Cabelo desalinhado e barba amarela. Uma camisola gasta tapada por um roupão ainda mais gasto…

[Tempo]

Vi-o outrora noutro corpo, mais jovem e mais sábio, era bonito.

[Vozes]

Há crianças que descem a rua em algazarra inocente e irritante. Da janela ele olha-as e sorri. Tem um sorriso bonito ainda.

[Suspiro]

Há pedaços nossos que morrem com o tempo, entregues ao vazio de um espaço que não existe.

Caminho pela memória de mim… Vejo os nossos pés marcarem passos por entre a calçada desalinhada. Falamos, ouvimos, calamos, olhamos. Ela parou para nos ouvir também.

“Somos nós”

Seremos sempre tão diferentes?

Por vezes vejo-nos simples na nossa complexidade… Talvez estejamos apenas demasiado familiarizadas com aparentes complexidades alheias.

[Sorriso]

Posso ouvir-te um dia inteiro, sorrio sempre no entender-te de olhos fechados. Temos uma diferença tão igual que me faz cócegas na boca.

[Perfeito Azul]

Caminhava contigo mas parou-me a imagem. O muro era velho e degradado… mas alguém, por alguma razão viu nele um espaço perfeito.

Incompleto Perfeito

Perfeito Incompleto

Incompletamente Perfeito ou Perfeitamente Incompleto?

Era um pequeno rectângulo, uma porta para nada, por onde passa ninguém, número 42. Azul. Senti-me em casa ali, espaço de ninguém tão bem qualificado. Incompleto perfeito, nº42, porta azul. Podia ser a minha morada, podia sim.

[Tempo]

Deixei de vê-lo, mas sinto ainda o cheiro do cachimbo e ouço uma voz intermitente que se projecta de uma pequena caixinha que habita acima dos livros de capa vermelha…

[Silêncio]

Cala-me o peito o gelo que impera na pele. Se me caísse agora uma lágrima seria gelo e não calor…

[Pestanejar]

Levanta-se para fechar a janela. Num segundo sorriu-me quase em tom de reconhecimento…

Quem terá ele visto?


imagem retirada do google

4 comentários:

Anônimo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anônimo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anônimo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Alexandre disse...

"Incompleto Perfeito

Perfeito Incompleto"

Tão perfeitamente descrito...